quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O ESTADO SEMI-PERFEITO DO CRISTÃO




O Estado Semi-Perfeito do Cristão


Existem poucas coisas nesta vida que podemos chamar de perfeitas. Todos os médicos do mundo não podem nos tornar perfeitamente saudáveis. Todos os cosméticos do mundo não podem nos tornar perfeitamente belos. Todos os livros do mundo não podem nos fazer perfeitamente sábios. Todos as igrejas do mundo não podem nos tornar perfeitamente bons. Nós vivemos em meio a uma raça caída e aprendemos a esperar nada além de imperfeição todos os dias desta vida. “Aquilo que é torto não se pode endireitar; e o que falta não se pode calcular” (Ec 1:15).

Mas aquilo que não encontramos neste mundo pode ser encontrado no reino de Deus, mesmo ainda nesta vida. Existem perfeições no reino invisível dos santos mesmo antes deles chegarem à sua morada eterna. É um erro pensar que nunca poderemos ter alguma forma de perfeição até que tenhamos deixado este mundo. Seria bom para nós fazermos um breve inventário dessas perfeições.

Em primeiro lugar, o perdão que o crente recebe de Deus é perfeito. Não quer dizer meramente que os pecados que cometemos antes de sermos batizados estão perdoados, ou ainda os pecados que cometemos antes de nos tornarmos membros de uma igreja. Não quer dizer que somente nossos pecados passados foram perdoados. Todo pecado e blasfêmia daqueles que estão em Cristo são perdoados. Nossos pecados futuros estão tão perdoados quanto os do passado e do presente. Eles foram lançados “nas profundezas do mar” (Mq 7:19),  desfeitos “como uma névoa” (Is 44:22), afastados de nós “quanto dista o oriente do ocidente” (Sl 103:12).

Nosso perdão já é perfeito. Ele não aumenta nem melhora. Nós não seremos mais perdoados, até mesmo no céu; nem nossos pecados estarão mais apagados quando dez mil anos de glória tiverem se passado. O perdão é perfeito para todo aquele que crê no Salvador. Se metade ou um quarto de pecado permanecesse sem perdão, isso seria o bastante para nos condenar  para sempre. Mas isso nunca acontecerá. “E dos seus pecados jamais me lembrarei” (Hb 8:12).

Em segundo lugar, nosso novo nascimento já é perfeito. É compreensível que muitos pregadores hesitem em dizer a crentes que seus pecados futuros estão perdoados antes mesmos de serem cometidos. Não conduzirá isso à licenciosidade e a uma vida frouxa? Essa doutrina não os levará a um estilo de vida negligente e descuidado? Assim seria se esse perdão não fosse concedido somente àqueles que nasceram de novo, e esse novo nascimento é algo perfeito. Ele modifica radicalmente o nosso ponto de vista e as nossas atitudes. Ele inscreve a lei de Deus nas tábuas do nosso coração. Ele inclina a nossa vontade à uma santa obediência. Ele enche o coração e a alma de amor por Deus.

É verdade que o novo nascimento não torna o crente perfeito. Entretanto, ele é um ato perfeito de Deus, que nunca mais precisa ser repetido. Se o novo nascimento não fosse perfeito nós teríamos de “nascer de novo” de novo, de novo, e de novo, muitas vezes. Mas não é esse o caso. O poderoso ato que transforma a alma e lhe concede um novo amor por Deus nos modifica de tal modo que somos feitos “nova criatura”(2 Co 5:17). O que não estava lá antes agora está presente: um coração para amar a Cristo, uma consciência terna, um deleite por uma nova obediência.

A justificação do crente também é perfeita. O homem em Cristo é tão justificado hoje como será na glória. A justificação precisa ser perfeita doutra sorte ela não é nada. Uma “totalidade de Cristo” nos pertence agora. A sua completa justiça é nossa agora. As vestes da salvação são perfeitamente adequadas para nos vestir e cobrir plenamente aos olhos de Deus. O crente já é, por assim dizer, “legalmente perfeito”.

As exigências da justiça de Deus são completa e inteiramente satisfeitas pelas provisões da Sua justiça. Aquilo que a lei exige, o evangelho provê. A justiça apresentada no evangelho do nosso bendito Salvador Jesus Cristo é a exata contrapartida de todas as rígidas exigências que a justiça e a lei de Deus jamais poderiam requerer de nós como suas criaturas. Crer em Jesus é “honrar” e “confirmar a lei” perfeitamente (Rm 3:31). Deus é tão rico em Sua bondade para com todos os que vêm a Ele por meio do Evangelho. Os retoques finais foram dados na nossa justificação quando o nosso Fiador bradou “Está consumado!” e quando Ele ressurgiu dentre os mortos. Que todos que a compreendem bebam largamente dessa palavra de consolo: “ nele fomos feitos justiça de Deus” (2Co 5:21).

Intimamenterelacionado a isso está o fato de que os crentes são os beneficiários de uma perfeita expiação. O sangue do nosso Senhor e Salvador é perfeitamente, eternamente, e de todas as formas, aceitável ao Pai Celestial. A cruz é a glória central da história e do universo inteiro. Os anjos todos se maravilham diante da sua sublime perfeição. Todos os santos, na terra ou nos céus, louvam a Deus por ela. Cristo humilhou-se para conquistar, suportou na sua alma o poder da vingança eterna; apaziguou a plena ira de um Deus ofendido; em seu amor foi feito pecado por nós, e transformou o semblante de censura e reprovação dos céus em um favorável sorriso. Nada na história se compara a dimensão da glória alcançada pelos sofrimentos de Cristo. A cruz é a coroa de todas as obras de Deus, o ponto culminante da Sua sabedoria e o ápice do seu amor. A expiação de Cristo tem uma perfeição que nos deixa sem palavras para expressá-la e possui essa perfeição já agora enquanto traz bênçãos e paz às nossas vidas.

A adoção do crente é perfeita nesta vida “Amados, agora somos filhos de Deus” (I Jo 3:2). João admite que “ainda não se manifestou o que havemos de ser” (I Jo 3:2), mas afirma que nós não seremos na glória mais filhos do que já somos aqui. Sejam quais forem as glórias que nos aguardam no último dia, elas não melhorarão a condição da nossa adoção, porque ela já é uma realidade agora. Obviamente é verdade que o nosso regozijo pela nossa adoção irá aumentar sobremaneira no último dia. Os privilégios e benefícios da nossa condição de filhos aumentarão imensamente quando o nosso Senhor em pessoa surgir nas nuvens para nos chamar para o lar na glória. Todavia o crente é tão filho de Deus em seu atual estado de humilhação quanto o será em seu estado ressurreto e celestial. Nós já somos filhos de Deus hoje. Isso é um fato claro na revelação e é algo que deve suscitar em cada crente um ardente sentimento de profunda gratidão a Deus.

Nós estamos falando das perfeições desta vida. E é bom que o façamos. Nós somos propensos a criar maus hábitos em nosso modo de pensar e a nos sujeitarmos inadvertidamente à sensação de que nesta vida “nada é perfeito”. Isso não é verdade e nós não devemos deixar nossas mentes irrefletidamente nos convencerem do contrário. Neste mundo imperfeito existem coisas perfeitas no crente, e há também um livro perfeito em suas mãos.

Entretanto, embora tudo isso seja dito, também existem imperfeições no crente. Nós nos encontramos ainda no estado de graça; e graça não é glória. A graça nos faz bons, mas não perfeitamente bons. Na glória nós seremos bons e somente bons. Na glória seremos melhores que Adão quando este foi criado. Ele era perfeito mas capaz de pecar; nós seremos perfeitos e incapazes de pecar.

O estado atual do crente é, portanto, um estado inacabado. O crente passa agora por um processo. Ele está em seu caminho rumo a uma perfeição futura. Por enquanto este processo está ainda incompleto. Mas será completado. Nossas lutas contra o pecado, ,interior e exteriormente, são evidências do fato de que não pecamos com toda a nossa vontade, como fazem pecadores não redimidos. Se pudéssemos nós nunca pecaríamos novamente. Nosso desejo é sermos perfeitos já, agora. Mas nosso desejo está além das nossas forças. Duas leis atuam neste momento dentro de nós. A lei do pecado e a lei da graça estão em choque constante tanto em nossa consciência como na nossa vida prática. A falta interior é dolorosa para nós; e essa falta, quando se torna externa e visível, é mortífera. Mas todo esse fracasso da parte do crente é apenas por um tempo. Nossa vitória está próxima, e é certa. A “perfeição legal” que é o nosso atual estado de justificação, certamente será por fim completada, depois de termos “sofrido por um pouco” (1 Pe 5:10), com uma perfeita santificação.

É um consolo para nós como cristãos lembrar que já estamos em uma condição semi-perfeita. O inimigo das nossas almas é muito hábil em sua tarefa de nos desmoralizar com suas meias-verdades: “Você ainda é um pecador”. Sim, mas um pecador salvo e a caminho do céu. “Você não é melhor que os outros”. Eu mereço o que todos os pecadores receberão, mas eu tenho um Salvador que morreu por mim e a minha condição diante de Deus é de uma perfeita justiça. “Você está muito longe de ser perfeito”. Eu apenas estou tão longe da perfeição quanto estou longe do dia da minha morte, que pode, segundo a boa vontade de Deus, estar muito perto.

Embora pareçamos muito com outras pessoas, somos muito diferentes delas do ponto de vista dos céus. Metade da nossa redenção já é uma realidade: estamos justificados, cobertos pelo sangue expiatório, adotados, nascidos do alto, “herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8:17). Nós somos nesta vida, por assim dizer, santos inacabados. Parte do processo do nosso aperfeiçoamento já foi efetuado, parte ainda está por ser feito. Nenhum cristão suponha que ele não é melhor hoje do que quando não tinha graça nenhuma . Só porque não estamos ainda em casa não quer dizer que não estamos a caminho.

Quais são então os aspectos imperfeitos do crente nesta vida? O mais sério e que exige mais a nossa a atenção não é a nossa alegria imperfeita, nem nosso conforto imperfeito. Muito mais sérias são nossas imperfeições moral e espiritual. São elas que exigem nosso zelo e consideração diários.

Nossa primeira imperfeição está em nossa fé imperfeita. A fé é o ponto de partida de toda a graça que recebemos, e requer a nossa maior atenção. Nós não cremos na Palavra de Deus como devemos. Disso brota mil e uma sementes do mal. A incredulidade é o mato da alma. Ela arruína com o gramado, com os canteiros, com os caminhos e tudo o mais. Por esta razão o nosso Salvador tão freqüentemente repreende o seu povo por essa sua maior fraqueza: “homens de pequena fé”. Creiamos em toda palavra de Deus, em toda doutrina, toda promessa, toda ameaça, todo preceito - vivamos como quem toma cada palavra de Deus como verdade, e assim alicercemos toda a nossa vida, alma e eternidade e tudo o mais na Sua palavra. É mais fácil os mares secarem e o sol não nascer a cada dia do que a palavra de Deus falhar. “Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” (Mc 13:31).

Outra imperfeição no crente é a sua conversão. Nós ainda não nos voltamos para Deus tão perfeitamente quanto precisamos e devemos. Nosso novo nascimento é algo que já está completo, de uma vez para sempre, mas a nossa conversão ainda está em andamento. Nós precisamos nos converter a Deus mais e mais a cada dia e de todas as formas. Voltemo-nos a Deus mais em oração, em submissão, em arrependimento, em amor, em deleite, em louvor, no serviço, e na expectativa do seu favor. O que distingue homens como Rutherford, M'Cheyne ou Brainerd de muitos outros cristãos senão o fato de que esses homens foram mais perfeitamente voltados para Deus nos seus corações e nas suas vida? Que Deus cada vez mais nos converta a todos.

A imperfeição que mais pesa sobre o crente o crente nesta vida é a sua imperfeita santificação. O padrão de perfeição é a lei moral. E esse padrão foi alcançado somente uma vez na história, quando nosso Senhor e Salvador viveu amando a Deus de toda a sua alma e ao seu próximo como a Ele mesmo. Para os outros não guardar a lei de Deus é a última das suas preocupações; para o crente, essa é a mais importante. É difícil perdoarmos a nós mesmos por amar tão pouco a Deus; por bendizê-lO com nossa língua e falarmos mal do nosso próximo no momento seguinte; por termos tantos pensamentos indignos; por fazermos tão pouco para beneficiar a humanidade com o Evangelho; por crescermos tão pouco no conhecimento da palavra de Deus.

Mas o “Ai de mim!” no coração do crente é uma evidência da graça e um sinal seguro de que, embora ainda não seja perfeito, ele já é semi-perfeito. A graça que temos é toda dada por Deus, e uma das bênçãos da graça é sabermos que precisamos de mais. E está dentro do propósito de Deus nos conceder mais até que cheguemos àquela terra de felicidade, onde a graça, como o maná, cessará e nós comeremos do bom fruto da terra para sempre.



Maurice Roberts

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