O Estado Semi-Perfeito
do Cristão
Existem poucas coisas nesta vida que podemos chamar de perfeitas.
Todos os médicos do mundo não podem nos tornar perfeitamente saudáveis. Todos
os cosméticos do mundo não podem nos tornar perfeitamente belos. Todos os
livros do mundo não podem nos fazer perfeitamente sábios. Todos as igrejas do
mundo não podem nos tornar perfeitamente bons. Nós vivemos em meio a uma raça
caída e aprendemos a esperar nada além de imperfeição todos os dias desta vida.
“Aquilo que é torto não se pode endireitar; e o que falta não se pode calcular”
(Ec 1:15).
Mas aquilo que não encontramos neste mundo pode ser encontrado no
reino de Deus, mesmo ainda nesta vida. Existem perfeições no reino invisível
dos santos mesmo antes deles chegarem à sua morada eterna. É um erro pensar que
nunca poderemos ter alguma forma de perfeição até que tenhamos deixado este
mundo. Seria bom para nós fazermos um breve inventário dessas perfeições.
Em primeiro lugar, o perdão que o crente recebe de Deus é
perfeito. Não quer dizer meramente que os pecados que cometemos antes de sermos
batizados estão perdoados, ou ainda os pecados que cometemos antes de nos
tornarmos membros de uma igreja. Não quer dizer que somente nossos pecados
passados foram perdoados. Todo pecado e blasfêmia daqueles que estão em Cristo
são perdoados. Nossos pecados futuros estão tão perdoados quanto os do passado
e do presente. Eles foram lançados “nas profundezas do mar” (Mq 7:19), desfeitos
“como uma névoa” (Is 44:22), afastados de nós “quanto dista o oriente do
ocidente” (Sl 103:12).
Nosso perdão já é perfeito. Ele não aumenta nem melhora. Nós não
seremos mais perdoados, até mesmo no céu; nem nossos pecados estarão mais
apagados quando dez mil anos de glória tiverem se passado. O perdão é perfeito
para todo aquele que crê no Salvador. Se metade ou um quarto de pecado
permanecesse sem perdão, isso seria o bastante para nos condenar para
sempre. Mas isso nunca acontecerá. “E dos seus pecados jamais me lembrarei” (Hb
8:12).
Em segundo lugar, nosso novo nascimento já é perfeito. É
compreensível que muitos pregadores hesitem em dizer a crentes que seus pecados
futuros estão perdoados antes mesmos de serem cometidos. Não conduzirá isso à
licenciosidade e a uma vida frouxa? Essa doutrina não os levará a um estilo de
vida negligente e descuidado? Assim seria se esse perdão não fosse concedido
somente àqueles que nasceram de novo, e esse novo nascimento é algo perfeito.
Ele modifica radicalmente o nosso ponto de vista e as nossas atitudes. Ele
inscreve a lei de Deus nas tábuas do nosso coração. Ele inclina a nossa vontade
à uma santa obediência. Ele enche o coração e a alma de amor por Deus.
É verdade que o novo nascimento não torna o crente perfeito.
Entretanto, ele é um ato perfeito de Deus, que nunca mais precisa ser repetido.
Se o novo nascimento não fosse perfeito nós teríamos de “nascer de novo” de
novo, de novo, e de novo, muitas vezes. Mas não é esse o caso. O poderoso ato
que transforma a alma e lhe concede um novo amor por Deus nos modifica de tal
modo que somos feitos “nova criatura”(2 Co 5:17). O que não estava lá antes
agora está presente: um coração para amar a Cristo, uma consciência terna, um
deleite por uma nova obediência.
A justificação do crente também é perfeita. O homem em Cristo é
tão justificado hoje como será na glória. A justificação precisa ser perfeita
doutra sorte ela não é nada. Uma “totalidade de Cristo” nos pertence agora. A
sua completa justiça é nossa agora. As vestes da salvação são perfeitamente
adequadas para nos vestir e cobrir plenamente aos olhos de Deus. O crente já é,
por assim dizer, “legalmente perfeito”.
As exigências da justiça de Deus são completa e inteiramente
satisfeitas pelas provisões da Sua justiça. Aquilo que a lei exige, o evangelho
provê. A justiça apresentada no evangelho do nosso bendito Salvador Jesus
Cristo é a exata contrapartida de todas as rígidas exigências que a justiça e a
lei de Deus jamais poderiam requerer de nós como suas criaturas. Crer em Jesus
é “honrar” e “confirmar a lei” perfeitamente (Rm 3:31). Deus é tão rico em Sua
bondade para com todos os que vêm a Ele por meio do Evangelho. Os retoques
finais foram dados na nossa justificação quando o nosso Fiador bradou “Está
consumado!” e quando Ele ressurgiu dentre os mortos. Que todos que a
compreendem bebam largamente dessa palavra de consolo: “ nele fomos feitos
justiça de Deus” (2Co 5:21).
Intimamenterelacionado a isso está o fato de que os crentes são os
beneficiários de uma perfeita expiação. O sangue do nosso Senhor e Salvador é
perfeitamente, eternamente, e de todas as formas, aceitável ao Pai Celestial. A
cruz é a glória central da história e do universo inteiro. Os anjos todos se
maravilham diante da sua sublime perfeição. Todos os santos, na terra ou nos
céus, louvam a Deus por ela. Cristo humilhou-se para conquistar, suportou na
sua alma o poder da vingança eterna; apaziguou a plena ira de um Deus ofendido;
em seu amor foi feito pecado por nós, e transformou o semblante de censura e
reprovação dos céus em um favorável sorriso. Nada na história se compara a
dimensão da glória alcançada pelos sofrimentos de Cristo. A cruz é a coroa de
todas as obras de Deus, o ponto culminante da Sua sabedoria e o ápice do seu amor.
A expiação de Cristo tem uma perfeição que nos deixa sem palavras para
expressá-la e possui essa perfeição já agora enquanto traz bênçãos e paz às
nossas vidas.
A adoção do crente é perfeita nesta vida “Amados, agora somos
filhos de Deus” (I Jo 3:2). João admite que “ainda não se manifestou o que
havemos de ser” (I Jo 3:2), mas afirma que nós não seremos na glória mais
filhos do que já somos aqui. Sejam quais forem as glórias que nos aguardam no
último dia, elas não melhorarão a condição da nossa adoção, porque ela já é uma
realidade agora. Obviamente é verdade que o nosso regozijo pela nossa adoção
irá aumentar sobremaneira no último dia. Os privilégios e benefícios da nossa
condição de filhos aumentarão imensamente quando o nosso Senhor em pessoa surgir
nas nuvens para nos chamar para o lar na glória. Todavia o crente é tão filho
de Deus em seu atual estado de humilhação quanto o será em seu estado
ressurreto e celestial. Nós já somos filhos de Deus hoje. Isso é um fato claro
na revelação e é algo que deve suscitar em cada crente um ardente sentimento de
profunda gratidão a Deus.
Nós estamos falando das perfeições desta vida. E é bom que o
façamos. Nós somos propensos a criar maus hábitos em nosso modo de pensar e a
nos sujeitarmos inadvertidamente à sensação de que nesta vida “nada é
perfeito”. Isso não é verdade e nós não devemos deixar nossas mentes
irrefletidamente nos convencerem do contrário. Neste mundo imperfeito existem
coisas perfeitas no crente, e há também um livro perfeito em suas mãos.
Entretanto, embora tudo isso seja dito, também existem
imperfeições no crente. Nós nos encontramos ainda no estado de graça; e graça
não é glória. A graça nos faz bons, mas não perfeitamente bons. Na glória nós
seremos bons e somente bons. Na glória seremos melhores que Adão quando este
foi criado. Ele era perfeito mas capaz de pecar; nós seremos perfeitos e
incapazes de pecar.
O estado atual do crente é, portanto, um estado inacabado. O
crente passa agora por um processo. Ele está em seu caminho rumo a uma
perfeição futura. Por enquanto este processo está ainda incompleto. Mas será
completado. Nossas lutas contra o pecado, ,interior e exteriormente, são
evidências do fato de que não pecamos com toda a nossa vontade, como fazem
pecadores não redimidos. Se pudéssemos nós nunca pecaríamos novamente. Nosso
desejo é sermos perfeitos já, agora. Mas nosso desejo está além das nossas
forças. Duas leis atuam neste momento dentro de nós. A lei do pecado e a lei da
graça estão em choque constante tanto em nossa consciência como na nossa vida
prática. A falta interior é dolorosa para nós; e essa falta, quando se torna
externa e visível, é mortífera. Mas todo esse fracasso da parte do crente é
apenas por um tempo. Nossa vitória está próxima, e é certa. A “perfeição legal”
que é o nosso atual estado de justificação, certamente será por fim completada,
depois de termos “sofrido por um pouco” (1 Pe 5:10), com uma perfeita
santificação.
É um consolo para nós como cristãos lembrar que já estamos em uma
condição semi-perfeita. O inimigo das nossas almas é muito hábil em sua tarefa
de nos desmoralizar com suas meias-verdades: “Você ainda é um pecador”. Sim,
mas um pecador salvo e a caminho do céu. “Você não é melhor que os outros”. Eu
mereço o que todos os pecadores receberão, mas eu tenho um Salvador que morreu
por mim e a minha condição diante de Deus é de uma perfeita justiça. “Você está
muito longe de ser perfeito”. Eu apenas estou tão longe da perfeição quanto
estou longe do dia da minha morte, que pode, segundo a boa vontade de Deus,
estar muito perto.
Embora pareçamos muito com outras pessoas, somos muito diferentes
delas do ponto de vista dos céus. Metade da nossa redenção já é uma realidade:
estamos justificados, cobertos pelo sangue expiatório, adotados, nascidos do alto,
“herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8:17). Nós somos nesta vida,
por assim dizer, santos inacabados. Parte do processo do nosso aperfeiçoamento
já foi efetuado, parte ainda está por ser feito. Nenhum cristão suponha que ele
não é melhor hoje do que quando não tinha graça nenhuma . Só porque não estamos
ainda em casa não quer dizer que não estamos a caminho.
Quais são então os aspectos imperfeitos do crente nesta vida? O
mais sério e que exige mais a nossa a atenção não é a nossa alegria imperfeita,
nem nosso conforto imperfeito. Muito mais sérias são nossas imperfeições moral
e espiritual. São elas que exigem nosso zelo e consideração diários.
Nossa primeira imperfeição está em nossa fé imperfeita. A fé é o
ponto de partida de toda a graça que recebemos, e requer a nossa maior atenção.
Nós não cremos na Palavra de Deus como devemos. Disso brota mil e uma sementes
do mal. A incredulidade é o mato da alma. Ela arruína com o gramado, com os
canteiros, com os caminhos e tudo o mais. Por esta razão o nosso Salvador tão
freqüentemente repreende o seu povo por essa sua maior fraqueza: “homens de
pequena fé”. Creiamos em toda palavra de Deus, em toda doutrina, toda promessa,
toda ameaça, todo preceito - vivamos como quem toma cada palavra de Deus como
verdade, e assim alicercemos toda a nossa vida, alma e eternidade e tudo o mais
na Sua palavra. É mais fácil os mares secarem e o sol não nascer a cada dia do
que a palavra de Deus falhar. “Passará o céu e a terra, porém as minhas
palavras não passarão” (Mc 13:31).
Outra imperfeição no crente é a sua conversão. Nós ainda não nos
voltamos para Deus tão perfeitamente quanto precisamos e devemos. Nosso novo
nascimento é algo que já está completo, de uma vez para sempre, mas a nossa
conversão ainda está em andamento. Nós precisamos nos converter a Deus mais e
mais a cada dia e de todas as formas. Voltemo-nos a Deus mais em oração, em
submissão, em arrependimento, em amor, em deleite, em louvor, no serviço, e na
expectativa do seu favor. O que distingue homens como Rutherford, M'Cheyne ou
Brainerd de muitos outros cristãos senão o fato de que esses homens foram mais
perfeitamente voltados para Deus nos seus corações e nas suas vida? Que Deus
cada vez mais nos converta a todos.
A imperfeição que mais pesa sobre o crente o crente nesta vida é a
sua imperfeita santificação. O padrão de perfeição é a lei moral. E esse padrão
foi alcançado somente uma vez na história, quando nosso Senhor e Salvador viveu
amando a Deus de toda a sua alma e ao seu próximo como a Ele mesmo. Para os
outros não guardar a lei de Deus é a última das suas preocupações; para o
crente, essa é a mais importante. É difícil perdoarmos a nós mesmos por amar
tão pouco a Deus; por bendizê-lO com nossa língua e falarmos mal do nosso
próximo no momento seguinte; por termos tantos pensamentos indignos; por
fazermos tão pouco para beneficiar a humanidade com o Evangelho; por crescermos
tão pouco no conhecimento da palavra de Deus.
Mas o “Ai de mim!” no coração do crente é uma evidência da graça e
um sinal seguro de que, embora ainda não seja perfeito, ele já é semi-perfeito.
A graça que temos é toda dada por Deus, e uma das bênçãos da graça é sabermos
que precisamos de mais. E está dentro do propósito de Deus nos conceder mais
até que cheguemos àquela terra de felicidade, onde a graça, como o maná,
cessará e nós comeremos do bom fruto da terra para sempre.
Maurice Roberts
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