Nós Nos Tornamos
Naquilo Que Amamos
Estamos todos num processo de
transformação. Já saímos daquilo que éramos e chegamos a esta posição onde
estamos; agora estamos caminhando para aquilo que seremos.
Saber que nosso caráter não é sólido e
imutável e, sim, flexível e maleável não é, em si, uma idéia que incomoda. De
fato, a pessoa que conhece a si mesma pode receber grande consolo ao
compreender que não está petrificada no seu estado atual; que é possível deixar
de ser aquilo que se envergonha de ter sido até então; e que pode caminhar em
direção à transformação que seu coração tanto almeja.
O que perturba não é o fato de estarmos
em transformação, e sim no quê estamos nos tornando; não é problema o
estarmos em movimento, precisamos saber para onde estamos nos movendo.
Pois não está na natureza humana mover-se num plano horizontal; ou estamos
subindo ou descendo, alçando vôo ou afundando. Quando um ser moral (com o poder
de escolha) se desloca de uma posição a outra, necessariamente é para o melhor
ou para o pior.
Isto é confirmado por uma lei
espiritual revelada no Apocalipse: “Continue o injusto fazendo injustiça,
continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e
o santo continue a santificar-se” (Ap 22.11).
Não só estamos todos
num processo de transformação, mas estamos nos tornando naquilo que amamos.
Em grande medida, somos a somatória de tudo que amamos e, por necessidade
moral, cresceremos na imagem daquilo que mais amamos; pois o amor, entre outras
coisas, é uma afinidade criativa; muda, molda, modela e transforma. É sem
dúvida o mais poderoso agente que afeta a natureza humana depois da ação direta
do Espírito Santo dentro da alma.
O objeto do nosso
amor, então, não é um assunto insignificante a ser desprezado. Pelo contrário,
é de importância atual, crítica e permanente. É profético do nosso futuro.
Mostra-nos o que seremos e, desta forma, prediz com precisão nosso destino
eterno.
Amar objetos errados é
fatal para o crescimento espiritual; torce e deforma a vida e torna impossível
a imagem de Cristo se formar na alma humana. É somente quando amamos as coisas
certas que nós mesmos podemos estar certos; e é somente enquanto
continuamos amando-as que podemos nos
deslocar lenta, mas firmemente, em direção aos objetos da nossa afeição
purificada.
Isto nos dá em parte
(e somente em parte) uma explicação racional para o primeiro e grande
mandamento: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma e de todo o teu entendimento” (Mt 22.37).
Tornar-se semelhante a
Deus é, e precisa ser, o supremo objetivo de toda criatura moral. Esta é a
razão da sua criação, a finalidade sem a qual não existiria nenhuma desculpa
para sua existência. Deixando de fora, no momento, aqueles estranhos e belos
seres celestiais a respeito dos quais conhecemos tão pouco (os anjos),
concentraremos nossa atenção na raça caída da humanidade. Criados originalmente
na imagem de Deus, não permanecemos no nosso estado original, deixamos nossa
habitação apropriada, ouvimos os conselhos de Satanás e andamos de acordo com o
curso deste mundo e com o espírito que agora opera nos filhos da desobediência.
Mas Deus, que é rico
em misericórdia, com seu grande amor com que nos amou, mesmo quando estávamos
mortos em nossos pecados, proveu-nos expiação. A suprema obra de Cristo na
redenção não foi salvar-nos do inferno, mas restaurar-nos à semelhança de Deus,
ao propósito declarado em Romanos 8: “Porquanto aos que de antemão conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm
8.29).
Embora a perfeita restauração à imagem
divina aguarda o dia do aparecimento de Cristo, a obra da restauração está em
andamento agora. Há uma lenta, porém firme, transmutação do vil e impuro metal
da natureza humana para o ouro da semelhança divina, que ocorre quando a alma
contempla com fé a glória de Deus na face de Jesus Cristo ( 2 Co 3.18).
Supremo Amor a Deus
Neste ponto, seria proveitoso antecipar
uma dificuldade e tentar esclarecê-la. É a questão que surge de um conceito
errado sobre o amor. Este conceito errado pode ser definido mais ou menos
assim: O amor é volúvel, imprevisível e quase totalmente fora do nosso
controle. Surge espontaneamente e tanto pode perdurar como apagar-se sozinho.
Como, então, podemos controlar nosso amor? Como podemos direcioná-lo para
objetos mais ou menos dignos? E, especialmente, como podemos obrigá-lo a
focalizar-se em Deus como o objeto apropriado e permanente da sua devoção?
Se o amor fosse, de
fato, imprevisível e além do nosso controle, estas perguntas não teriam
respostas satisfatórias e nossa perspectiva seria desoladora. A simples
verdade, entretanto, é que o amor espiritual não é esta emoção caprichosa e
irresponsável que as pessoas pensam erroneamente que é. O amor é servo da nossa
vontade e sempre terá de ir para onde for enviado e fazer o que lhe foi
ordenado.
A expressão romântica
“apaixonar-se” nos deu a noção que somos obrigatoriamente vítimas das flechas
do Cupido e que não podemos ter controle algum sobre nossos sentimentos. Os
jovens hoje esperam se apaixonar e ser arrebatados por uma tempestade de
emoções deliciosas. Inconscientemente, estendemos este conceito de amor à nossa
relação com o Criador e nos perguntamos: Como podemos nos obrigar a amar a Deus
acima de todas as coisas?
A resposta a esta
pergunta, e a todas as outras relacionadas a ela, é que o amor que temos por
Deus não é o amor do sentir, mas o amor do querer. O amor está
dentro do nosso poder de escolha, de outra forma não teríamos na Bíblia a ordem
de amar a Deus, nem teríamos de prestar contas por não amá-lo.
A mistura do ideal de amor romântico
com o conceito de como nos relacionar com Deus foi extremamente prejudicial às
nossas vidas cristãs. A idéia de que é necessário “apaixonar-se” por Deus, como
algo passivo da nossa parte, fora do nosso controle, é uma atitude ignóbil,
antibíblica, indigna da nossa parte e que certamente não traz honra alguma ao
Deus Altíssimo. Não chegamos ao amor por Deus através de uma repentina
visitação emotiva. O amor por Deus vem do arrependimento, de um desejo de mudar
o rumo da vida e de uma determinação resoluta de amá-lo. À medida que Deus
entra de maneira mais completa no foco do nosso coração, nosso amor por ele
pode, de fato, expandir-se e crescer dentro de nós até varrer, qual enchente,
tudo que estiver à sua frente.
Mas não devemos esperar por esta
intensidade de sentimento. Não somos responsáveis por sentir, somos
responsáveis por amar, e o verdadeiro amor espiritual começa com o
querer. Devemos fixar nosso coração para amar a Deus acima de todas as coisas,
por mais frio ou duro que este possa estar, e depois confirmar nosso amor
através de cuidadosa e alegre obediência à sua Palavra. Emoções prazerosas
certamente seguirão. Cânticos de passarinhos e flores não produzem a primavera,
mas quando a primavera chega todos estes sinais a acompanharão.
Agora, apresso-me em negar qualquer
identificação com a idéia popular de salvação por esforço humano ou força de
vontade. Estou radicalmente oposto a toda forma de doutrina, com “capa” cristã,
que ensina a depender da “força latente dentro de nós”, ou a confiar em
“pensamento criativo” no lugar do poder de Deus. Todas estas filosofias
infundadas falham exatamente no mesmo ponto – por presumirem erroneamente que a
correnteza da natureza humana possa ser levada a voltar e subir as cataratas no
sentido contrário. Isto é impossível. “A salvação vem do Senhor.”
Para ser salvo, o homem perdido precisa
ser alcançado pelo poder de Deus e elevado a um nível superior. Precisa haver
uma transmissão de vida divina no mistério do novo nascimento, antes de poder
aplicar à sua vida as palavras do apóstolo: “E todos nós, que com a face
descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o
Espírito” (2 Co 3.18, NVI).
Ficou estabelecido aqui, espero, que a
natureza humana está num processo de formação e que vai progressivamente se
transformando na imagem daquilo que ama. Homens e mulheres são amoldados por
suas afeições e poderosamente afetados pelo desenho artístico daquilo que amam.
Neste mundo adâmico e caído, isto produz diariamente tragédias de proporções
cósmicas. Pense no poder que transformou um garotinho inocente, de bochechas
rosadas, num Nero ou num Hitler. E Jezabel, será que sempre foi a mulher
maldita cuja cabeça nem os cachorros quiseram comer? Não! No princípio, ela
também sonhou com a pureza de uma garotinha e se enrubescia ao pensar no amor
sentimental; mas logo ficou atraída por coisas perversas, admirava-as e
finalmente passou a amá-las. Aí a lei da afinidade moral tomou conta e Jezabel,
como argila na mão do oleiro, se tornou aquele ser deformado e odioso que os
eunucos jogaram pela janela (2 Rs 9.30-37).
Objetos Morais Dignos do Nosso Amor
Nosso Pai celestial proveu para seus
filhos objetos morais e dignos de serem admirados e amados. São para Deus como
as cores no arco-íris em volta do trono. Não são Deus, porém estão mais
próximos a Deus; não podemos amá-lo sem amar estas coisas e à medida que as
amarmos, seremos capacitados a amá-lo ainda mais. Quais são elas?
A primeira é justiça.
Nosso Senhor Jesus amava justiça e odiava iniqüidade (Hb 1.9). Por esta razão,
Deus o ungiu com o óleo da alegria acima de todos seus companheiros. Aqui temos
um padrão definido. Amar implica também em odiar. O coração atraído à justiça
será repelido pela iniqüidade no mesmo grau de intensidade; esta repulsão moral
é ódio. A pessoa mais santa é aquela que mais ama a justiça e que odeia o mal
com o ódio mais perfeito.
Depois vem a sabedoria. Temos a
palavra “filosofia”, que vem dos gregos e significa o amor à sabedoria; porém
os profetas hebreus vieram antes dos filósofos gregos e seu conceito de
sabedoria era muito mais elevado e espiritual do que qualquer coisa que se
conhecesse na Grécia. A literatura da sabedoria no Velho Testamento –
Provérbios, Eclesiastes e alguns dos Salmos – pulsa com um amor à sabedoria
desconhecido até por Platão.
Os escritores do Velho Testamento
colocam a sabedoria num plano tão elevado que às vezes mal conseguimos
distinguir a sabedoria que vem de Deus da sabedoria que é Deus. Os hebreus
anteciparam por alguns séculos o conceito grego de Deus como a essência da
sabedoria, embora seu conceito da sabedoria fosse mais moral do que intelectual.
Para os hebreus, o homem sábio era o homem bom e piedoso, e sabedoria na sua
maior nobreza era amar a Deus e guardar seus mandamentos. O pensador hebreu não
conseguia separar sabedoria de justiça.
Um outro objeto para o amor cristão é a
verdade. Aqui também teremos dificuldade em separar a verdade de Deus da
sua pessoa. Cristo disse: “Eu sou a verdade”, e ao dizer isso, uniu verdade com
a divindade de forma indissolúvel. Amar a Deus é amar a verdade, e amar a
verdade com ardor constante é crescer em direção à imagem da verdade e
afastar-se da mentira e do erro.
Não é necessário tentar relacionar
todas as outras coisas boas e santas que Deus aprovou como nossos modelos. A
Bíblia as coloca diante de nós: misericórdia, bondade, pureza, humildade,
compaixão e muitas outras, e aqueles que forem ensinados pelo Espírito saberão
o que fazer a respeito delas.
Em síntese, devemos amar e cultivar
interesse em tudo que é moralmente belo. Foi por isto que Paulo escreveu aos
filipenses: “Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for
nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo
o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem
nessas coisas” (Fp 4.8).
A. W. Tozer
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