A força de um sentimento
Eu sempre me
perguntei porque a Bíblia Sagrada não destaca o papel da mulher e da
maternidade, dando-lhe a mesma ênfase social que o humanismo lhe dedica. Entre
as figuras femininas que ocupam as páginas do Livro Sagrado, até mesmo aquelas
que se sobressaíram positivamente como Sara, Débora e Rute, a menção sobre elas
não tem um caráter de contribuição histórico social, como acontece com alguns
personagens bíblicos do sexo masculino. Até mesmo a mãe de Jesus, cujo exemplo
de maternidade revelou-se irrepreensível, recebeu dos escritores inspirados um
retrato econômico e bem sucinto. De maneira que, ainda que se considere os
valores culturais daquela época como justificativa para essa restrição, há que
se pensar numa outra fórmula para compreender a economia com que o assunto foi
tratado, sem perder de vista a infalibilidade do conjunto dos livros sagrados
projetados para uma dimensão eterna.
Portanto, fui
buscar na primeira maternidade uma compreensão mais clara do que Deus revela
sobre esse desempenho social e me deparei com uma sentença de juízo lá em
Gênesis 3:16: "E à mulher ( Deus) disse: Multiplicarei grandemente a tua
dor e a tua concepção; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu
marido e ele te dominará."
Pareceu-me
sugestivo que a maternidade estivesse vinculada a um documento sentencial cujo
pacote nasceu acompanhado da dor, do desejo e da submissão, tendo a assinatura
do próprio Deus no final da sentença. Estava, pois, aí, a chave bíblica para a
compreensão espiritual do invólucro maternal e dos enigmas existenciais que o
acompanham: a maternidade foi para sempre vinculada à idéia de sofrimento e
essa vinculação não existe por força de conteúdo poético mas por determinação
do próprio Deus. Ele mesmo disse que com dor teríamos filhos e que, não
obstante essa dor, acrescentaríamos ao nosso histórico existencial algumas
características hormonais que nos fariam desejar um marido, mesmo conhecendo
que esse varão do sexo masculino nos dominaria pelos séculos dos séculos. Que
me perdoem as feministas, mas o que Deus disse está dito e amém! Ainda que
Jesus tenha vindo para nos libertar da lei, permanece em nós mulheres, um
resquício de assentimento vocacional para com os rigores do Éden. Gostamos da
sentença que foi prolatada. Apegamo-nos a ela como princípio, meio e fim de
nossa existência.
De saída
compreendi que, não por acaso, há um ditado popular que diz assim: "ser
mãe é padecer num paraíso." E se levarmos em conta que há muito tempo o
paraíso deixou de ser um lugar geograficamente localizado aqui no
"planetinha", chega-se à conclusão de que ser mãe é padecer na terra
mesmo. Não é fácil ser mãe na conjuntura atual. Mesmo que os partos não venham
mais, via de regra, acompanhados das dores de ordem física e que a analgesia se
encarregue de amenizar cada vez mais a sentença genésica, ser mãe, no mundo de
hoje, repleto de perigos e sobressaltos, é acrescentar à própria existência um
jeito de ser potencialmente dolorida e dolorosa. De repente, tudo nos assombra:
o ambiente se torna forçosamente hostil, ameaçando o nosso amor maior. Com a
maternidade nos sobrevêm não apenas aquela força primitiva, que faz de todas
nós, mulheres-leoas protegendo o filho-filhote, mas também a consciência de que,
por uma ligação biopsíquica, estamos vinculados, irremediavelmente, àquele ser
que é parte de nós, mas ainda assim não nos pertence mais. Quando o cordão
umbilical foi cortado, com ele rompeu-se a nossa ascendência absoluta sobre
aquela existência tão frágil, tão delicada e, paradoxalmente, tão cheia de
vontades. De certa forma, não fomos nós quem o expulsamos do ventre: foi ele
quem nos expulsou para poder realizar as suas próprias escolhas existenciais.
Ser mãe é vivenciar o mais profundo e paradoxal dos sentimentos porquanto mesmo
amando, com toda a força da nossa alma, bem cedo compreendemos que não nos
compete alardear esse amor tão pleno e nem fazer dele a nossa bandeira maior.
Aliás, ser mãe é amar discretamente, sempre em silêncio, reservando o estandarte
para usá-lo, apenas, nos momentos de maior fragilidade existencial. É ainda,
torcer para que esses momentos sejam superados sem a nossa participação direta,
e que, de certa forma, a nossa maternidade seja tão plena, mas tão plena, que
passe despercebida a olhos atentos. É estimular a individualidade através da
qual uma parte se desprende de nós e ainda assim, misteriosamente, permanece
ligada a nós para sempre. Ser mãe é fazer como Maria que, quando não
compreendia as escolhas pessoais de seu filho Jesus, revestia-se de sabedoria
para calar-se, "guardando todas as coisas no seu coração."
Ser mãe é um
paradoxo completo: um exercício de amor incondicional, louco, cego,
absolutamente carregado de plenitude, completamente vocacionado para uma
grandeza transfigurada de orgulho "santo" e, ainda assim, disfarçado
de coisa pequena, malbaratado dentro de palavras e conceitos modulados que a
ética social recomenda como psicologicamente adequados, e que na prática se
traduzem por um projeto de renúncia que nunca se realiza dentro de nós. Ser mãe
é, pois, engolir o bramido da leoa com o temor de cada dia, quebrando os
padrões internos estabelecidos desde o Éden, para adquirir o amor suave
recomendado nos nossos dias, sem o qual estaríamos violando os princípios da
mais moderna educação.
Achar o
caminho de volta iria requerer um esforço além da nossa compreensão histórica
porque teríamos que reavaliar os papéis que desempenhamos ao longo da vida:
toda mãe tem dentro de si a lembrança da filha que foi um dia. E se nos
deparássemos com a incoerência, seríamos um alvo muito fácil para as
contradições existenciais que povoam o nosso imaginário. Assim, resta-nos olhar
o mundo com esse cuidado maternal eterno e bem escondido que existe dentro de
nós, mesmo correndo o risco de que, ao menor sinal de perigo, como num jogo de
luz e sombras, a verdade interior apareça: somos exageradamente mães para o
resto das nossas vidas.
Eu que, no
exercício desse papel, tenho atravessado o vale da sombra da morte, eu que me
divido entre lá e cá, eu que tenho "guardado muitas coisas no meu
coração", devo lhe garantir que não há hipótese, não há remédio, não há
circunstância, não há separação que possa ofuscar a grandeza desse sentimento:
Além da morte, a maternidade ainda vive.
Ana Maria
Ribas Bernardelli
escreveu os
livros : Não há
Jerusalém sem
Gólgota" e
"O Vaso,
o Tesouro e a Fera"
publicados
pela Editora Hosana.
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